sexta-feira, 6 de novembro de 2015
Canto do bardo
Amigos, campeões
Em que resolvemos
Se o que beberemos
Serão celebrações
Ou lamentos em conto.
É chegado o instante
De nossa absolvição
Nosso grito de guerra
Ressoe por toda a terra
E por essa paixão
Marchemos avante.
Eis a hora do som do clarim
Anunciem os amantes antigos
Que passaremos convictos
Que mesmo não invictos
Sobre todos os perigos
Nosso fôlego reinará ao fim.
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
A vida
É um tiro no pé
Um piano sem nota
Um chuchu feito em picolé
É uma paz
Um calor
Boa, livre e fugaz
É um desdobramento do amor
É um porre colossal
De rum vagabundo
Na véspera do funeral
De um amigo moribundo
É um choro de alegria
Um tesão sem tamanho
O cessar da agonia
No caos completo do rebanho
É um bolo de dinheiro
Mas de tempo antigo
Em território estrangeiro
De país inimigo
É o espanto
O primeiro movimento
É toda forma de encanto
Contida num só momento
É foda
É a falta dela
Invenção de moda
Armada a tragédia mais bela
É passageira
Conflituosa
É ela assim, tão faceira
A vida é maravilhosa.
terça-feira, 15 de setembro de 2015
O dia em que descobri a democracia
Compartilhando deste momento pimpolho, meus fiéis comensais de todos os dias, Giovanni (que engoliu uma moeda de vinte e cinco centavos e possuía uma glamurosa pasta de dente de três cores), Karen (que, fazia questão de lembrar sempre, morava na rua Alemanha), Vítor (de quem, com o perdão do descaso, não me lembro muita coisa, exceto a emblemática língua presa) e Emília (isso! Igualzinho a do sítio, não é demais?), igualmente empolgados, questionavam-se acerca dos assuntos de maior relevância em nossa pequena póles; as especulações sobre a atividade mimiografada que a professora distribuía, com a calma de todas as santificadas professoras de ensino infantil, amém, aumentavam à medida em que ela se aproximava de nossa mesinha quadrada. Cabecinhas mais curiosas erguiam-se como os suricatos, tentando descobrir, antes do tempo, o mistério do contorno a ser preenchido com nossos lápis e gizes de cera.
Chegou, enfim, a nossa vez. Na folha, animaizinhos sorridentes compunham uma espécie de fazenda feliz, sem empregados ou cercas. Eu, particularmente, achava aquilo tudo muito estranho. Recebi minha folhinha, e pus-me a analisar, com certo rancor e desapontamento, que todos os desenhos de bichinhos na folha pediam cores que, ou eu não possuía em mãos, por serem muito específicas, ou, particularmente, detestava.
Era o caso, por exemplo, do polêmico "cor-de-pele", que já começava errado por seu nome não fazer o mínimo sentido. Primeiro, porque essa cor não existe. Segundo, porque não somente eu não tinha aquele tom de pele, como também não havia conhecido, em todos os meus cinco anos de experiência vital, um ser humano sequer que o tivesse. Em contrapartida, se por um lado, os seres humanos não eram "cor-de-pele", os porcos, pelo outro, eram exatamente daquela cor, por baixo da lama.
Havia, lá, na minha atividade, um porquinho simpático. Eu nunca tinha visto um porquinho simpático, pelo simples fato de porcos não falarem, é óbvio. Mas isso, deixei passar, por mera indisposição para discussões desnecessárias com meus prezados colegas, aparentemente muito contentes com seus bichinhos simpáticos.
Foi quando, com o tal do cor-de-pele (de porco) a postos, comecei a preencher, solenemente, o meu porquinho de comportamento duvidoso para sua espécie. Mas um terrível incidente desviou o foco de minhas atenções, drasticamente. Dei de cara com a insustentável situação de ter, bem ali, diante de mim, a Emília, colorindo seu porquinho figurão com o giz azul. Absurdo. Não, não. Inaceitável, mesmo.Com aquilo, não pude me conformar. Como é, meu deus, que alguém podia assim, sem mais nem menos, alterar a ordem natural das coisas, pintando um porquinho de azul? Meu primeiro impulso foi o de, com muita calma e paciência, dizer à minha amiguinha que aquilo era muito errado. Seria melhor voltar atrás, usar o truque da borracha molhada, apagar aquele erro homérico e seguir a origem da natureza suína, como a conhecemos.
A princípio, como se pode imaginar, minhas advertências não surtiram efeito algum, e a Emília, resumidamente, não se esforçou minimamente para responder minha afronta. Insisti. Foi quando, num súbito de esclarecimento e consciência política visivelmente superiores a muitos membros do congresso, a Karen bradou, a plenos pulmões, a máxima de libertação cromática que eu tornaria, anos mais tarde, meu mantra pessoal:
- Cada um pinta da cor que quiser!
Eu estava desolada. Todas as minhas fortes bases conservadoras, naquele exato momento, foram por terra. Ao passo que, tentando procurar na memória um argumento que invalidasse o dela, não consegui encontrar nada que justificasse meu comportamento extremamente ditatorial e opressivo. Foi este o dia memorável em que, na praça, entendi o real significado de viver em harmonia. Daquele momento em diante, hoje percebo, todos nós nos tornamos mini-cidadãos verdadeiramente preparados para a vida pública.
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
As flores e os muros
E ao abstrair do seu concreto toda a dureza
As mudas falam de amores tão puros
Que até os muros decretam bela sua pureza
Quando a chuva, tão saudosa nos faz visita
E vem tocar outra vez os muros e as flores
Seu toque, de tanto que a toca, a incita
A verter o pranto que floresce novos amores
A luz nascente do sol traz os dias seguros
Faz sob os muros nascerem sombras espessas
A séria alvenaria forma desenhos mais duros
E as flores sorrindo, desenham formas travessas
Por vezes os gatos que vivem nos arredores
Vem pela noite sobre os muros caminhar
Atrás de quem possa abrandar os ardores
Da carne que vive a madrugada a pulsar
Nas noites que a lua preenche os céus tão escuros
Tão cheios de nós estamos cheiros e cores:
E as flores, vencendo os muros
E os muros, cedendo às flores.
quarta-feira, 22 de julho de 2015
O mundo e a gente
terça-feira, 14 de julho de 2015
O fabuloso mundo das pessoas que enxergam mal
sábado, 11 de julho de 2015
Sexo, Violência... E tudo isso aí que você pensou, mesmo
terça-feira, 23 de junho de 2015
Um singelo convite para tomar chuva
Olhar a chuva é uma atividade cuja honrosa posição na grande Listagem Universal Das Coisas Aleatórias Que Apenas As Pessoas Plenamente Desocupadas Fazem já pode desbancar até mesmo a tradicional e famigerada contagem de clipes e grampos, não somente por seu fortíssimo embasamento filosófico, mas também é claro, pela possibilidade de observação sobre a quantidade massiva de diferentes formas de lidar com fenômenos pluviais que os seres humanos, em sua superioridade racional, desenvolveram ao longo de milênios de evolução na natureza: correr, cobrir-se com jaquetas ou bolsas, esconder-se em abrigos improvisados de forma amontoada, ou até mesmo o grandioso guarda-chuva - item motivador de grande orgulho entre os utensílios criados pelas mãos providas de polegares opositores -, enfim; o homem é o primeiro animal a armar um verdadeiro circo de horrores para se proteger da substância de alta periculosidade que compõe aproximadamente setenta por cento de... Seu próprio corpo (um fenômeno verdadeiramente impressionante).
Contudo, se algo pode ser mais prazeroso do que simplesmente observar da janela do quarto quentinho a chuva e suas consequências sobre a frágil e insegura visão humana de mundo, é muito provável que esta coisa seja justamente estar lá fora na chuva, enquanto a magia acontece e as pessoas desesperadas passam, esforçando-se ao máximo por se esconder dela. E com toda a certeza, dirigindo a você olhares de forte reprovação, num misto de perplexidade e pena. Na verdade, você provavelmente receberá os mais pesados julgamentos nessa situação. Provavelmente, sua sanidade mental receberá os mais pesados julgamentos. E sua maturidade, também. E sua aparente (in)capacidade de lidar com o Terrível Mundo Dos Adultos, então...
Bem, em outras palavras, ficará bastante claro a todos os presentes, neste caso, que você faz parte da grande parcela de seres inconsequentes e perigosíssimos que representam um péssimo exemplo para a criançada, por não temer infinitamente a principal substância presente no corpo humano. No entanto, se ainda assim, tendo a consciência plena das consequências de ser um inconsequente, seu nobre coraçãozinho vagabundo não puder conter uma alegria jovial ao imaginar-se banhando nas gotinhas daquela garoa sarcástica das tardes de junho, em praça pública, anunciando sua própria desgraça diante da seriedade dos seres sociais à sua volta, permanece o convite. Aproveitar um bom banho de chuva pode ser muito mais interessante do que simplesmente fingir que ela não existe, por mais incrível que isso possa parecer.
terça-feira, 2 de junho de 2015
Fotofobia II
A luz branca
De um sol envelhecido
Esfaqueia a janela
Invade
Atravessa
A penumbra da sala de estar
A meia luz
De uma vela inteira
Queima a distância
Aquece
Abraça
Os corpos do quarto menor
Dá pra ver que lá fora
A luz seca do dia
Na umidade dessa rua
Tão fria,
Tão crua,
Vem tão cheia de mora.
domingo, 3 de maio de 2015
Não podemos ter gente preta por aqui
Passeando pelos corredores de um shopping na avenida paulista, me deparei com uma daquelas cenas cotidianas bem comuns: o segurança, um homem negro, fardado e com o rádio em punho, encaminhava, como um pastor, um grupo de três moleques da mesma cor, não mais que treze anos cada, para a saída. Por motivos de segurança, pensei. Provavelmente já haviam dado problema antes. Segurança. Aquela mesma segurança nacional, motivação ideológica da nossa revolução de sessenta e quatro.
Passei reto, mas refleti sobre aquilo. Aquele homem negro não fazia mais que seu trabalho (como todo bom trabalhador negro), que era garantir a nossa integridade, o nosso conforto. Nós temos de nos sentir confortáveis para continuar movendo a economia. E é muito nítido que aqueles três pequenos monstrinhos de um metro e meio representavam, para a nossa integridade, uma ameaça terrível. Pelo simples fato de existirem. Pelo simples fato de não serem, como o segurança, funcionários.
Não podemos ter gente preta desuniformizada por aqui. São normas de segurança, e é simplesmente inadmissível. Eles já podem passear livremente pelos corredores durante seus horários de almoço, pra que precisam ocupar nosso espaço também em seus domingos? Pra que suas crianças também viriam até aqui? Isso é muito revoltante. Permitimos já, demais, deixando que utilizem o local externo ás cozinhas da praça de alimentação, sob título de passatempo até que tenham de voltar ao trabalho. Trabalho negro. Trabalha, negro!
(Relato fantasioso sobre uma situação real.)
domingo, 12 de abril de 2015
Juramento
Ao medo dos homens e suas escolhas
À brisa macia que agrada a face
À luz do dia e ao verde das folhas
Ao próprio amor e a todo o enlace
Ao sempre que nunca se alcança
Ao todo da vida e ao seu nenhum
À idade corrida que aos ossos avança
Aos irmãos de Jesus e filhos de Ogum
Ao concreto e às coisas criadas
Às cadeias morais dessa guerra
À realidade abstrata das indomadas
Às marcas da pele na luta pela terra
A tudo isso,
A nada disso,
Dedicada uma vida toda.
quinta-feira, 9 de abril de 2015
Autorretrato
A minha alma tem lacunas
Como a lei que nos governa
Por ela ando sobre as dunas
Entro e saio das cavernas
Minha alma é bicho solto!
Não se prende a amor de vida
Pode estar por um dia envolto;
No seguinte já é ser de partida
A infeliz chora, e mata, e morre
Ou canta, ou anima o mundo errante
No fim há só o tempo que escorre
Pelas mãos desse pobre ser infante
O astronauta
Quando criança,
queria ser astronauta
um dia, cresceu
e tornou-se o melhor
de todos os que o mundo podia ter
só era uma pena
não poder perceber isso
por estar ocupado demais
lavando o chão dos banheiros
de um shopping center.
quarta-feira, 8 de abril de 2015
Pela janela do ônibus
Na rua daquela igreja
há uma kombi incinerada
representando a decomposição
de tudo aquilo que (não) vive
nas ruas duras dessa cidade
Mais adiante, na mesma calçada
ciscando, condicionado
um grupo de ex-galos-de-rinha
só espera, da vida e do mundo
encontrar milho entre as folhas secas.
quarta-feira, 1 de abril de 2015
Mortes horríveis
Morro todo dia um pouco
De ódio, amor
Ou de saudades
Eu morro como morre quem é louco
Morro às vezes pela manhã
Ou mais a noite
Também sem regra
Eu morro à embriaguez da vida sã
Morro quando desce a tardinha
E caminha, sem ardor
O ser dessas amenidades
Opondo-se à guerra, a paz desalinha
Morro sem pressa ou sem coragem
Morro de culpa ou por açoite
E como todo a quem se alegra
Eu morro da febre que me causa tua friagem
terça-feira, 31 de março de 2015
Tragédia de fins desconhecidos
Para assuntos de negócios
Sempre soube não bem prestar
Espantou-se em também falhar
Como impulso de seus ócios
Desandou a então cair
Em profundo desassossego
Que seu peito em desapego
Queimava em dali sumir
E seu desejo era tão forte
De não mais desiludir-se
Que vindo novo a partir-se
O coração que era seu norte
Rendeu pranto do mais fino
Lamentava a toda lua
Caminhando nesta rua
Que se chama desatino.
sexta-feira, 27 de março de 2015
Sonho de consumo
Eu queria morar
Numa rua sem saída
Na esquina daquela avenida
Ou em qualquer outro lugar
Dormir quem sabe
Nesse túnel de chão imundo
No meio desse louco mundo
Antes ou depois que se acabe
Viver numa casa de praia
Caminhar sob o cinza do céu
Nas tardes do outono ao léu
Melancolizar à toda gandaia
Queria estar tão distante
E correr longe, livre do ego
Queria não morar; desapego
Queria do sol ser amante.
sexta-feira, 20 de março de 2015
Força, Nicola
A minha história com o Nicola começou ano passado, quando eu ainda trabalhava em uma escola. Na época, meu aparelho de celular pifou, e tive de comprar outro, exatamente pelo mesmo motivo que um peixe precisa de uma bicicleta, a partir do momento em que todos os peixes como ele convencionarem que peixes precisam de bicicletas para viver. Pois bem. Comprei. Troquei também a operadora e o número da linha, mas aí já foi por burrice, mesmo.
Desde então, minha vida mudou. E foi aí que o Nicola surgiu. Não sei dizer se para o bem ou para o mal, mas o que importa é que, mesmo nunca tendo conhecido, de fato, o Nicola - e é provável que nunca venha a conhecê-lo -, ele já faz parte de mim. Está sempre presente, é um cara por quem cultivo, senão um grande afeto, ao menos muita solidariedade.
O ocorrido, de forma mais objetiva, foi que logo alguns meses após adquirir a linha e aparelho atuais, o recebimento muito frequente (quase diário) de mensagens depreciando o crédito e o nome do Nicola vem atormentando minha existência. Dizem que ele tem dívidas, pendências absurdas há muito tempo (acho minimamente deselegante uma empresa que passa essa sorte de informações sobre seus clientes a terceiros, que nada tem com a suposta dívida alheia). Pedem, de forma nada discreta, que ele pague algo que, segundo as mensagens, ele deve a alguém.
A princípio, pensei tratar-se de uma daquelas pegadinhas muito divertidas que os presidiários mais espirituosos nos passam quando entediados pela ineficiência do sistema carcerário brasileiro, mas logo percebi, quando das mensagens escritas, passei a receber ligações com vozes femininas cansadas pela exploração da classe operária de telemarketing, que aquilo tudo era mais uma obra ardilosa de uma dessas grandes corporações, para constranger o pobre Nicola diante de mim, que nem sequer o conheço.
O sistema novamente mostra-se muito mais perverso e insidioso do que podemos acreditar que fosse. É terrível pensar que o Nicolinha seja assim gratuitamente difamado, sabe. Nem direito à defesa ele teve, coitado. Esta empresa a qual, por sinal sempre preservou seu próprio direito de imagem, me faz temer pela vida financeira de Nicola.
Hoje disseram-me por mensagem de texto, que seu processo transita em cartório, talvez muito em breve ele tenha de responder judicialmente por isso; espero sinceramente que ele possa livrar-se dessa terrível acusação. E por último, se não for pedir muito, espero também que parem de me ligar à procura do Nicola, porque eu juro: não conheço ninguém com esse nome, nem tenho seu contato real.
segunda-feira, 16 de março de 2015
O homem ao portão
Todavia, para ele, isso pouco parecia incomodar, e independentemente da chuva ou da luz rasgada do sol do meio dia, ele estaria sempre lá, no portão. Seu compromisso afinal, não era com a hipotética retribuição por educação ou por pena - muitos julgavam-no louco -, mas sim com o simples gesto de acenar, a quem quer que passasse na frente de sua casa.
Acenava, inclusive muitas vezes para mim, em meus dias mais tristes e vagos, sem esperar qualquer resposta, mesmo. Descobri anos mais tarde: assim seria o tão famigerado ato de amor.
Contravenção
Subiu logo ali mais um diabo de concreto
Caiu mais à frente outro homem faminto
Foi condenado mal do humano o instinto
Para o maldito seguir e gerar lucro direto.
Será então tributada, toda forma de afeto
Os transgressores terão o direito extinto
Caso haja desordem em qualquer recinto
Onde o diabo tenha implantado seu feto.
Mas fiquem já alertados estes astutos
Que queiram lucrar sobre nosso sentir
Ainda que tenham cães pesados e brutos
Não será suficiente taxar nossos minutos
Haverá o amar e o fundamento de existir
Haverá todo afeto, mesmo sob tributos
domingo, 15 de março de 2015
Culpa
A ignorância maior
Não surge dos que não tem
O acesso ao conhecimento
A sua face pior
Nasce das entranhas de quem
Os larga ao esquecimento.
quinta-feira, 12 de março de 2015
Adaptação
Corre nos ciclos desse jogo
Findar de princípio mudo
Saber o pequeno de tudo
Queimar em querer o fogo
Pender por justiça ou por paz
Chorar como (rio) do terror
Sangrar e sofrer, e ter dor
Ardendo em tesão no que faz
Compete ao ser toda a sorte
De coisas, de vidas, de boas
Até que por fim vem a morte
Compete invadir o inferno
Roubar a cabeça do diabo
Voltando antes do inverno.
terça-feira, 10 de março de 2015
Crise da crise
Passado o tempo do eu abstido
Volveu correndo à doce morada
Que sabia não ser coisa ordenada
Largar assim ao favor esquecido
Nunca haveria mesmo de ter partido
Fosse a paixão uma causa pensada
Mas sendo de ardil natureza intrincada
Sem convite ocupou o seio escolhido
Eis que porém arrepende-se agora
Mas que nunca ousasse voltar
Antes o faça, mesmo com mora
Bom é o tino que assim aflora
Já que de vida só se leva provar
Vive o de dentro e também de fora.
sexta-feira, 6 de março de 2015
Deu ruim
Levou um bolo
Comeu com sorvete
Não foi consolo
Chorou pra cacete
Ligaram de madrugada
Correu logo atender
Era engano ou roubada
Quis na hora morrer
Se fosse contar na fila
Virava causa de riso
Mas sua graça, tranquila
Debandou sem aviso
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
Como pode
Parece melhor parar
De vez
De achar
Que gostar
Tem a ver com sensatez
Pode ser, amor
Que a tez
Seja horror
E haja dor
Pra curar na embriaguez
Talvez seja bom
Que assim
Nesse tom
Meio marrom
Se acabe o início (que não teve fim).
terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
Araraquara
Há um bichinho bem pequeno
Quase que cabe na palma da mão
Mas prefere morar na cabeça
Instalando o caos e a confusão
Seu ofício é implantar a dúvida
Come indecisão no café da manhã
Se no almoço a despretensão é fúlgida
Já de tardinha ele é só afã.
Bicho difícil de lidar,
É esse que não pode ter nome
Pois se arisco é seu apelido
Definição há de matá-lo de fome.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
Bolo formigueiro
O amor é um moleque mimado
Brincando no quintal o dia inteiro
Lá pelas tantas há de ser chamado
A comer bolos, pelo doce cheiro.
A tarde toda esteve debruçado
Sobre o fascínio de um formigueiro
Lupa em riste, há de ter carbonizado
Mais de mil corpos, o maldito traiçoeiro.
Ainda assim recebe destiladas doçuras
E oferece em troca, um abuso;
Pirotecnias com a face de sua loucura
O amor é ingrato até à alma mais pura
E não lhe negam nem um parafuso
A executar nos corpos sua louca tortura.
Bolo formigueiro
O amor é um moleque mimado
Brincando no quintal o dia inteiro
Lá pelas tantas há de ser chamado
A comer bolos, pelo doce cheiro.
A tarde toda esteve debruçado
Sobre o fascínio de um formigueiro
Lupa em riste, há de ter carbonizado
Mais de mil corpos, o maldito traiçoeiro.
Ainda assim recebe destiladas doçuras
E oferece em troca, um abuso;
Pirotecnias com a face de sua loucura
O amor é ingrato até à alma mais pura
E não lhe negam nem um parafuso
A executar nos corpos a tortura.
domingo, 18 de janeiro de 2015
Acidez
Primeiro, a menina corajosa se escondeu atrás do móvel. Não queria aparecer de novo, mas não porque tinha medo, e sim porque... Bem, talvez fosse por ter medo, sim. Afinal de contas, por que as meninas corajosas não podiam sentir medo, às vezes? Tinha medo, a menina corajosa. Muito medo, e não somente do que pudesse ameaçar sua coragem e seu valor inquestionável, como também - principalmente - daquilo que tentasse, de má fé, extinguir por completo seu medo. Na verdade, ela tinha muito mais medo de pensar sobre deixar de ter medo, do que de qualquer outra coisa.
No fundo mesmo, a gente tem sempre dessas coisas, de se contradizer. Apesar de não parecer, por exemplo, a paciência, de vez em quando, se fantasia de pressa, e a pressa de paciência, e a repressão de desejo, e o desejo, de repressão, e assim por diante, até que nossa cabeça dê um nó e a gente não tenha outra opção a não ser finalmente deixá-la quietinha, sem pensar muito, enquanto o resto do corpo tenta segurar as pontas por sua conta e risco.
É certo que quando isso acontece, invariavelmente, algo há de dar errado; a cabeça é que foi feita pra pensar, e não o resto das pontas do corpo. Mas supondo que segundo os preceitos das grandes linhas de produção industrial (um claro exemplo de péssimo exemplo a ser citado, neste assunto), nada é insubstituível, em certos casos o melhor a se fazer é esquecer a função das pontas do corpo, e deixar mesmo que tudo siga religiosamente o tortuoso caminho da falta de caminho a ser seguido.
Dessa forma, a covarde menina, num ato de extrema coragem, deixou sua cabeça de lado, segurando as pontas com as outras pontas do corpo, e seguiu feliz o mais aterrador de seus medos: o de segurar as pontas, com outras pontas, ao mesmo tempo em que as entregava todas de uma vez a um terrivelmente imprevisível destino... Sem pontas.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
Plano Premium
Contabilizando a gentileza humana
Algumas das coisas muito difíceis (porém não impossíveis) de se contabilizar podem surpreender por serem, justamente, incontáveis. uma delas, por exemplo, é a gentileza humana. Não se contabiliza, até onde se aprende nas aulas de matemática do ensino fundamental ou dos estágios intermediários dos cursos de inglês, esta virtude raramente presente nos mamíferos de polegares opositores. No entanto, é importante ressaltar a não-impossibilidade de se contabilizá-la. Caso não tenha ainda compreendido, pegue a calculadora mais próxima, atire-a contra a parede, livrando-se dela o mais rápido possível, e venha se aventurar no fantástico mundo exterior das relações interpessoais.
Imagine-se adentrando um ônibus. Isso mesmo, aquele veículo de transporte público que preza pela locomoção coletiva ao invés da individual, pela qual pagamos agora três reais e cinqüenta centavos para utilizarmos. Imagine que você passa a catraca, ainda reclamando por esse absurdo aumento que há de gerar mais lucro para camadas da sociedade as quais você jamais pertencerá.
Agora, depois da catraca, você avista um banco, dirige-se a ele, pede educadamente uma tímida "licença" a quem está do lado, e por fim, senta-se ao lado deste semelhante seu, um outro ser exatamente como você, e ainda assim, provido de toda a sua individualidade, quiçá a característica mais fascinante dos seres de nossa espécie. Até então, estão absolutamente em harmonia. Independentemente de credo, classe social, gênero, cor, orientação sexual, vocês são dois seres da mesma espécie, e ponto. Exatamente como você ignora por completo o histórico político-econômico-social-psicológico deste ser, ele também ignora o seu, e por enquanto é o que tem em comum, além da espécie e consequentemente os medos e desejos inerentes a ela, talvez um punhado de características físicas, mas só.
Eis que nessa paz, de apenas sermos quem somos e deixarmos ser quem quer que seja, sem questionamentos, surge um atentado ao prosseguimento da situação, que mudará por completo a forma como você encarou os fatos sobre aquele ser ao seu lado. Que mudará talvez até mesmo a sua fisionomia, para o resto do dia. Que mudará até mesmo a sua fé na natureza humana. Um ato de radicalismo, um ato de extrema gentileza.
Utilizando-se de seus fantásticos polegares opositores, o ser ao seu lado abre o zíper de uma bolsa, estes dois últimos, provas concretas da modernidade e do comportamento social pós-moderno, e de dentro da bolsa ele tira nada mais, nada menos que: um tablete de aproximadamente quinze centímetros de pé-de-moleque. Embalado. Acabou de sair da lojinha de um real. Provavelmente, foi fabricado em alguma cidade do interior, talvez até mesmo tenha vindo de outro estado. A pessoa abre o pacote. Perfeitamente normal, sim. Até o momento em que, num súbito ataque de simpatia aterradora, ela se vira para você e diz, num sorriso tranquilo: "aceita?"
Seu mundo é, neste momento, o submarino do capitão nemo, imergindo e emergindo sem controle num oceano de profundos sentimentos misturados, mas tudo acabou ali. Não houve cantada, não houve interesse, não houve sequer alguma outra intenção, naquela pequena palavra, além do puro oferecimento de um doce a uma pessoa desconhecida. Sim, é dificílimo acreditar, mas foi assim mesmo, um simples oferecimento, desprovido de qualquer malícia. Você tem vontade de chorar, você tem vontade de sorrir, pulando e se jogando num gramado inacreditavelmente verde e saudável, e correr de mãos dadas com aquele ser humano fabuloso ao seu lado, abraçá-lo fortemente, para que ele saiba o quanto é maravilhoso o que acabou de fazer pela restauração diária de fé na humanidade.
timidamente, você sorri de volta, dizendo baixinho: "ah, não. Mas muito obrigado/a". E sua vida segue, contabilizando incontáveis créditos de gentileza, internamente.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
O dom e a eterna sacanagem divina
Aparentemente, este planeta super cafona e decaidinho que chamamos de lar está dividido em três grupos de pessoas, respectivamente apresentados em ordem crescente da quantidade de membros: o das pessoas com bom senso, o das que são frouxas e não opinaram e por último, o maior grupo: o das pessoas que acreditam em dons.
Diz-se do dom, no dicionário de língua portuguesa cujo nome não vem ao caso: "SM. 1 dádiva, presente. 2. Qualidade inata [...] 4. Poder. [PL.: dons]". Basicamente, portanto, a maior parte da população mundial acredita que Van Gogh teria, em algum dado momento de sua triste vida, recebido um presente que o tornou um carinha talentoso o bastante para criar belas pinturas, por exemplo.
Não que haja efetivamente um problema em acreditar nisso; é até uma crença bastante plausível, sob a nossa condição mortal, afinal, para deixar de ser plausível, as crenças devem teoricamente levar seu crente a ceifar o direito essencial à vida de outrem, mas provavelmente passa a ser um pouco constrangedor quando seus tios e/ou avós começam a acreditar que por ter andado ou balbuciado algumas palavras antes do tempo, você seja com certeza um ser agraciado com algum tipo de genialidade bizarra como as daqueles caras que comandam empresas de software bilionárias.
Pois é, a parcela da população crente em dons celestiais comete algumas gafes. Talvez você tenha se frustrado um pouquinho ao descobrir que pós-doutorado em física quântica das ciências iônicas da galáxia paradoxal não combinaria com quem você queria ser, justamente por causa da crença; às vezes, ela pressiona um pouco a gente. Mas não se sinta mal por isso, de forma alguma. Ser corretor de imóveis também é OK, e talvez você nem fosse feliz estando em outra situação, não é mesmo?
No entanto, em meio a tantas peculiaridades existentes na crença de dons, mais do que na da meritocracia e menos do que na da cura gay, há um certo efeito negativo, e ele se dá quando o indivíduo crente retira de seu vocabulário a prática e a experiência, para reduzir (ou aumentar?) tudo à decorrência de dom.
Vejamos, tudo bem acreditar que uma entidade superior tenha conferido a cada pequeno ser alguma habilidade específica. Todavia, será praticamente impossível não sentir ao menos uma pontinha de curiosidade a respeito de como e por que diabos esse camarada superior teria presenteado algumas pessoas com dons um tanto... Exóticos (a exemplo daquela sua amiga que decorava placas de carros de todos os professores do ensino fundamental, do seu colega que toca a língua no nariz ou até mesmo da sua prima que consegue fazer bolas de chiclete maiores que o próprio rosto).
Torna-se, por fim, uma paranóia agonizante, imaginar que o ser superior que te fez uma grande decoradora de placas de carros, um cara que toca o nariz com a língua, ou uma fazedora de bolas de chiclete, estava na verdade meio entediado e resolveu fazer umas sacanagens com seus seres inferiores.
De qualquer forma, o importante mesmo é não ceifar o direito essencial à vida de ninguém. Não tanto por grandes motivos, mas mais por ser plausível em suas crenças, numa boa.
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
Coisas que a chuva não impede
Cansada de ouvir tantas reclamações
Sobre aquilo que a chuva
Poderia impedir
fluência normal do tráfego
Aulas ou reuniões
Fez uma lista de outras coisas tão legais
Que jamais
A chuva há de proibir
A chuva não impede
As pessoas de jogar
Sejam cartas de baralho
ou sinuca, no bar
Ou que estando proibidas
de brincar no quintal
as crianças construam cabanas
com alguns itens de enxoval
A chuva não impede
Que se faça amor sem compromisso
No aconchego do apartamento
de uma das partes envolvidas nisso
E a chuva não impede
Que você seja feliz
Fazendo caretas quando cai
uma gota de chuva no nariz
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
A perda da graça
Ao que tudo indica, durante muitos séculos de pesquisa sobre o comportamento da espécie humana, concretizou-se a ideia de que nossa sina biológica, que os mais ousados chamariam ciclo de vida, resumiria-se apenas a quatro eventos citados e difundidos em escolas, igrejas e na interminável fila do açougue da vila: a gente nasce, cresce, reproduz-se e morre, deixando os filhos feitos na terceira fase ( se bem que muitas vezes a segunda e a terceira fase possam vir a inverter-se, mas não vem ao caso) ao deus dará.
No entanto, teorias um tanto mais sofisticadas, por assim dizer, foram muito além para nos mostrar que estivemos perdidamente enganados acerca desta infame listinha de verbos inerentes ao ser humano; de certa forma, provou-se por a + b, como 2 e 2 são 4, que na verdade nosso ciclo de vida, como dizem os caras de pau, teria um outro ato a mais, nas imediações da segunda fase oficial - o crescer -, apesar de o tempo não ser certeza, ao qual chamamos carinhosamente "perder a graça".
Não se descobriu a princípio com muita exatidão, sob qual circunstância perdemos a graça; muitos diriam se tratar do aniversário que não tem mais importância, outros alegariam que para si, perderam a graça quando deixaram de sair de casa sem guarda-chuva, ou até mesmo houve quem dissesse que nada era mais sinônimo de perder a graça do que o matrimônio da legislação monogâmica, mas o certo é que esta aparentemente simples descoberta causou nos cientistas um grande reboliço, e inclusive, um leque de outros teoremas foi aberto com esta possibilidade, uma vez que a partir deste novo conhecimento, desta verdadeira inovação científica, como já é de se esperar sempre, após qualquer evento terreno, os cientistas e pesquisadores ganharam cada vez mais empregos, enquanto os poetas, roteiristas de esquetes, comediantes e humoristas os perderam à mesma proporção, porque estas são as regras do jogo.
Surgiram enfim, como pipocas estourando na panela, as milhares de vertentes do estudo sobre o quinto possível elemento no comportamento biológico do ser humano. Alguns destes, como por exemplo o estudo acerca do momento da vida em que perdemos a graça, questionavam, como não deve ser difícil deduzir, a data em que esta fatalidade nos acontece.
Foi quando os cientistas dividiram-se entre os que acreditavam tratar-se de um evento localizado entre o nascer e as primeiras palavras, estando portanto antes do crescer na sina da vida, e outros, que juravam de pés juntos que a perda da graça começaria a apresentar seus sinais visíveis após o sexto copo consecutivo de cerveja, podendo-se localizar tanto antes, quanto depois do crescer - ou do reproduzir, já que os descendentes puxam muito da graça humana.
Os votos também variavam entre os que relativizaram tanto a coisa ao ponto de acharem que a perda estaria após a morte. A justificativa dada a esta possibilidade foi a de que "memórias póstumas de Brás Cubas" seria uma obra muito entediante, porém esta teoria foi logo quebrada com o argumento sobre a especulação do estereótipo do cientista que odeia literatura.
De qualquer forma, o mais impressionante em toda essa história incrível continua sendo, sem dúvidas, o fato de que, em absoluto, todos os cientistas empenhados em descobrir mais sobre como, quando, onde e por que o ser humano perde a graça, já haviam perdido as suas graças de forma integral havia muito tempo, e seria de fato dificílimo fazer qualquer piada que fosse, sobre, para ou com eles. Daí então, mais uma vez os poetas, roteiristas de esquetes, comediantes e humoristas, como já é parte do ciclo de vida dessas subespécies quase-humanas, perderam seus poucos empregos (que pode ser o quarto ou terceiro ato na listinha infame de verbos inerentes a estes seres, mas não deixa de se fazer presente).